sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

11688

O senhor está chanesco! Assim de repente a coisa soou-me estranha. Não pela intimidação que deveria ser mas pelo descasamento entre a cordialidade de Senhor e a (in)vulgaridade do chanesco. É o que faz tentarem ensinar estes novos policias que vêm lá das berças a tratar os senhores condutores com modos. Na primeira curva metem os pés pelas mãos. Agora que dou por mim acho ainda mais estranho um puto com pouco mais de vinte anos, se já os tiver, a tratar-me por senhor. Não gosto. Tem uma relação muito estreita com o outro, o Senhor do Altar. Acho que deveria haver mais decoro. Os seus documentos por favor! Os meus documentos? Não percebo. O homem tem-me ali de carne e osso, o próprio, e faz mais fé num pedaço de papel com uma gravura que em mim próprio? Longe devem ir os tempos em que cada um valia por si, por aquilo que era e pela sua palavra. Isso. Reparo que ainda não disse uma única. Nem direi. É uma daquelas decisões que já nos chegam pré-tomadas. Não abrirei a boca. Não sei se consigo. Não é que não seja de manter promessas, o que sucede é que não tenho a certeza de sentir os lábios, a boca. Estou estranho. Tudo à minha volta é muito estranho. Sei quem sou, nome e isso, mas não me recordo exactamente onde estou nem como ali fui parar. Não, não estou ferido, acho eu! Percebo alguma agitação à minha volta, luzes e sombras. Pessoas. Muitas pessoas! O tal que me tratou por senhor já se foi. Não cheguei a perceber o que queria ou se queria alguma coisa. Vou tentar pensar devagar e controlar um turbilhão de ideias que me cairá em cima a qualquer momento. Adivinho-o. Estou sozinho no meio de muita gente que se move agitada aparentemente sem me dar importância. Certo. Não falo. Consigo lidar com os meus pensamentos. Roupa? Terei roupa? Sim! Sim, mais ou menos. Tenho umas roupas que não reconheço. Os tecidos não me são sequer familiares. Leves, meio transparentes, tipo anjo, Não essa de ter morrido e estar num túnel de acesso ao paraíso é bacoca demais, essa não. O ambiente é de uma luminosidade leitosa. Se me esforçar consigo ver com alguma nitidez as feições das pessoas. Ninguém pára quieto. Espera! Agora as coisas começam a fazer sentido. Ao fundo vejo a Paula. A Paula? Essa foi minha colega de liceu já lá vão uns anitos, será que ainda me conhece? Bem, eu conheço-a. Mas espera. Lá ao fundo de quê? Parece que estou dentro de um enorme sólido onde tudo se move e ao mesmo tempo se confina. Isto tem que ter alguma lógica. Tem de haver forma de lidar com tanta estranheza. Vamos lá: não estou ferido, não estou nu, não estou morto, onde raio é que estou afinal? Vou tentar concentrar-me num ponto. Só me vem à cabeça aquela história da curvatura espaço-tempo. Ando a ver filmes a mais. Bem pelo menos começo a reconhecer-me na forma de pensar. Recomecemos. Vejo três putos numa bicicleta, à vez, e que são… essa não! Outra vez a cena da bicicleta do Manuel e a rapaziada a discutir a vez num ride alucinante de quatro ou cinco pedaladas. Espera aí! Eu consigo ver-me a mim próprio mas em datas anteriores. Boa! É isso! Tudo o que me rodeia me diz respeito. È uma espécie de filme 3D onde toda a acção se passa nesta espécie de poliedro com 11688 lados em que me encontro. Cada lado uma cena, cada cena uma recordação, um relampejo de uma vida. Cá está: quando estive na Noruega, o Liceu D. Duarte, a malta do grupo...
Amigo! Está chanesco este! Amigo! Vai dar-me os documentos ou não?

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